sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Quem é o inimigo?



            Entre os motivos que me conduziram – conscientemente ou não – a atuar como professor, está, sem dúvida, o incômodo que a escola me causava. Quando era aluno no ensino médio, eu tinha a sensação de que as coisas poderiam ser feitas de modo diferente e melhor, ainda que eu não tivesse qualquer ideia de que modo seria esse. Hoje, com alguma experiência acumulada e certo conhecimento sobre educação, consigo identificar problemas sérios no modo como se conduz o acesso ao conhecimento em nossa sociedade. Entre eles, destaco a cultura de intolerância ao erro, especialmente por achar que ela tem contribuído de forma extremamente negativa no debate político – sobretudo, pasmem, no campo da esquerda –, prejudicando assim a luta pela igualdade e pelo respeito ao outro.

            Sem a pretensão de fazer disto um artigo acadêmico, tomo como intolerância ao erro não apenas o xis vermelho que se faz sobre a resposta incorreta, mas todo um ambiente hostil a quem arrisca pensar para além da cartilha. Na minha experiência em cursos pré-vestibulares, é muito comum que, terminada a aula, alunos venham dizer em voz baixa: “Professor, eu tenho uma pergunta idiota”. Não raro, porém, a essas desculpas antecipadas seguem questões estimulantes, que me deixam realmente pensativo e, por vezes, em dúvida também.

Quando acontece isso, não posso deixar de pensar na escola que essas pessoas tiveram: certamente, foram espaços onde se ensinou a lidar muito mal com a dúvida e, provavelmente, a ridicularizar o erro – postura que, é claro, continua se reproduzindo para além da escola. É com base nisso, portanto, que levanto minha hipótese: arrisco dizer que, na defesa de causas como o combate ao racismo e ao machismo, essa mesma cultura de intolerância ao erro tenha limitado o acesso e talvez até a adesão de mais pessoas a essas importantes pautas.

No meu caso particular, para termos um exemplo concreto, a condição de negro me deixa, por razões óbvias, “confortável” para opinar sobre questões como o racismo institucional e práticas discriminatórias cotidianas. Além de algumas leituras, a experiência me dá, sobre meus amigos brancos, alguma “vantagem analítica”. Quando discutimos, por exemplo, se havia racismo em “O sexo e as negas”, mais de um deles defendeu, num primeiro momento, a série da Globo, mas acabou mudando de opinião após ouvir o lado do preto aqui – o que me deixa envaidecido, apesar de dizerem que é pecado. Se alguém me perguntasse qual foi meu principal argumento, eu diria sem titubear: o respeito à construção do pensamento divergente.

É claro que, sendo parte de um grupo que sente o preconceito “na pele”, não é fácil ter sempre esse espírito “zen” e comedido. Os que fazemos parte de algum grupo discriminado (negros, mulheres, gays, etc.) corremos sempre o risco de não distinguir discurso discriminatório e pessoa preconceituosa. Sem negar em hipótese alguma a existência do opressor, que deve ser combatido, parto aqui do princípio de que existe também a alma confusa que pode (e deve!) ser esclarecida. Mas, para “separar o joio do trigo”, precisamos enxergar a pessoa diante de nós, e não simplesmente o erro por ela cometido.

Neste meu lugar de “homem cis”, seria bastante presunçoso acreditar que já estou “limpo” de todo o bombardeio machista e homofóbico que os filmes, as músicas, as telenovelas, os programas de televisão, a família, a escola e a arquibancada do Corinthians dirigiram, de modo bastante orquestrado, à minha pessoa. Mas, nesta busca por ser uma pessoa menos ruim, não tenho dúvida de que a paciência de alguns amigos e amigas me ajudaram muito mais do que a agressividade diante de “escorregadas” que, por mais que eu não queira, posso voltar a cometer.


Meu ponto é que, quando agredimos ou ridicularizamos, do alto de nosso pedestal lido e instruído, aqueles que inconscientemente revelam efeitos danosos de sua formação machista, racista ou homofóbica, perdemos importantes oportunidades de conquistar corações e mentes. Sou incapaz de acreditar que, para ser contra o racismo, a transfobia, o machismo e tantos outros males, é necessário antes saber seguir toda a cartilha de determinado grupo. Na mudança em que eu acredito, o sectarismo não tem lugar.

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